Em 1991, com “Europa” Lars consegue dois prêmios em Cannes, o Grande Prêmio do Júri e o Prêmio de Melhor Contribuição Artística.
No ano de 1996 o diretor lança o primeiro filme da bem-sucedida trilogia “Coração de Ouro”. “Ondas do Destino” foi indicado a vários prêmios, inclusive ao Oscar (Emily Watson à categoria de Melhor Atriz). Recebeu o César de Melhor Filme Estrangeiro e o Grande Prêmio do Júri, novamente, em Cannes.
Em 2000, o aclamado “Dançando no Escuro” recebe diversas indicações nos grandes festivais europeus e americanos. Ganha o prêmio máximo em Cannes, a Palma de Ouro, além da Palma de Melhor Atriz para Björk; o Independent Spirit Awards na categoria de Melhor Filme Estrangeiro e o Goya de Melhor Filme Europeu.
As primeiras obras que obedeceram às premissas excêntricas do movimento foram “Festa de Família” de Vintenberg e “Os Idiotas” de Trier.
Ainda hoje, dez anos após o lançamento do manifesto no Festival de Cannes em 1998, os idealizadores são questionados quanto à criação de regras, talvez, tão pouco atrativas e eficientes.
O movimento Dogma 95 passou longe de ser um vento impetuoso revolucionário na história do cinema. Soou como “um oportunismo com ares de jogada de marketing”, como aponta Janaina Cunha Zonzin e Ludymilla Sá em artigo publicado pela revista Múltipla de agosto/ 2000. Muitas das regras estabelecidas seriam esquecidas por seus próprios criadores nas produções subsequentes.
Obviamente o movimento não foi totalmente descartável. A câmera nas mãos ou ombro continua sendo marca distintiva das obras de Lars Von Trier. A não estabilidade das imagens captadas pelo diretor potencializa o envolvimento dos espectadores com os longas pela regrinha que lhes confere verossimilhança. A câmara de Lars é inquieta e penetrante. Por utilizar de muitas tomadas em primeiríssimo plano, focando o rosto de seus protagonistas, chegamos a nos sentir incomodados com o sofrimento deles, pois parece não se tratar do infortúnio exclusivo de Selma em “Dançando no Escuro” ou Bess em “Ondas do Destino”, são sentimentos compartilhados com quem está à frente da (intransponível?) tela de cinema ou TV.
A obra de Lars Von Trier é constituída, essencialmente, de longas dramáticos. Mas o diretor teve experiências com outros gêneros cinematográficos, como o musical, o terror (sua última produção, “Anticristo” a ser lançada em agosto de 2009) e a comédia (“O grande Chefe” e “Os Idiotas”).
Os recursos técnicos usados em suas obras não possuem regularidade, exceto a utilização da câmera nas mãos ou ombro. A imprevisibilidade de Lars ao filmar fica clara quando ele contraria quase todas as regras do manifesto em 2000, utilizando “tudo o que tinha direito” para filmar o musical dramático “Dançando no Escuro”. O diretor chegou a fazer uso de cem câmeras em um dos devaneios musicais da personagem de Björk - nada parecido com o que propunha cinco anos atrás.
Já em “Dogville” e “Manderlay” ele abre mão dos cenários, mas não de uma boa mixagem de som para construir aquilo que não podia ser visto, o que fisicamente não existia, como as portas das casas. O diretor utiliza ainda recursos fotográficos de tratamento da imagem e a trilha sonora.
Em “Anticristo” Lars opta uma fotografia que se aproxima à dos longas americanos. Ele recorre ainda à utilização de efeitos especiais e, no processo de montagem, aos flashbacks - o que era terminantemente proibido pelo Dogma.
TEMÁTICAS ABORDADAS
Uma das principais características de Lars Von Trier é a sutileza. Tendo como norte roteiros audaciosos e originais, ele consegue traçar intrigantes análises sociológicas ligadas à obscura psique humana, além de provocar em seus espectadores reflexões e auto-análises constrangedoras.
Os simbolismos estão presentes aos montes nos longas do diretor. Nenhum elemento aparece sem uma justificativa plausível - sinos, correntes, óculos não são meros acessórios. Suas comédias podem parecer leves, porém não são nada inocentes, mas sim, imbuídas de questões concernentes à ética moral. Por ser demasiadamente político, Trier foi muito criticado como ele mesmo relata em entrevista a Geoffrey Mcnab, traduzida e publicada pelo site “Foco Jornalístico” em agosto de 2007.
Seus personagens são asquerosos, dissimulados, aproveitadores e perversos frente à imaculada figura de suas protagonistas - personificação dos mais nobres atributos humanos.
O longa “Ondas do Destino”, primeiro filme da trilogia “Coração de Ouro”, revela o paradoxo egoísmo/ generosidade implicado nas relações amorosas. Lars faz com que a fragilidade de Bess, protagonista vivida pela excelente Emily Watson, não esteja ligada apenas à sua debilidade mental, mas também à sua fome de amor e amar, à sua vontade incontrolável de viver tudo aquilo que esteve privada sob as rédeas do avô e mãe conservadores e leis invioláveis da comunidade arraigada à tradições dogmáticas e puritanas da religião da qual a moça fazia parte. O diretor expõe ainda a falha da instituição religiosa ao utilizar da figura de uma igreja ortodoxa, presa a regras obsoletas que reprimiam até mesmo manifestações sentimentais primárias, que fazia uso de métodos cruéis para a absorção de seus valores e ao apontar a incabível severidade das punições exercidas pelo grupo de anciãos que prezavam pelos preceitos religiosos que pautavam a vida da comunidade. Observe como a “kirki”, conjunto senil, se sente no direito de deferir juízos que caberiam somente a Deus. O diretor consegue, então, plantar nos espectadores mais atentos, pequenas sementes de rebeldia e contestação.
O altruísmo é a principal virtude de Selma, personagem da cantora islandesa Björk em “Dançando no Escuro”, filme que completa a trilogia “Coração de Ouro”. O longa, lançado no ano de 2000, é considerado, por vários críticos de cinema, um dos mais dramáticos já feitos. Lars cria a figura de uma heroína tcheca que vai para os EUA trabalhar para tentar livrar o filho da cegueira, doença hereditária que, gradualmente, torna a visão da protagonista turva até que o escuro prevaleça. Entre a dura realidade de Selma e seu mundo paralelo - o dos musicais, sua maior paixão e válvula de escape - o sofrimento da personagem é elevado à vigésima quinta potência, o que levou - ou forçou - Cannes às lágrimas na primeira exibição do longa onde disputava a Palma de Ouro.
Em “Manderlay”, continuação de “Dogville” (análise abaixo), o diretor segue a mesma fórmula do primeiro filme da trilogia a respeito do EUA, dando mais um claro exemplo da intolerância norte-americana. Dessa vez a temática é a escravidão africana. O diretor expõe os reflexos de tão longo e perverso período de dominação que refletiam 70 anos após a abolição da escravatura nos EUA. Grace, vivida por Bryce Dallas Howard que substitui Nicole Kidman, tenta impor um sistema de igualdade e liberdade democrática numa fazenda com resquícios dos Estados Unidos discriminatório [não que ele tenha deixado de ser] que começava a emergir do século XIX. Porém, ao tentar ensinar aos negros “livres”, mas psicologicamente dependentes do domínio branco, o valor da liberdade, Grace percebe que seus esforços são vãos, sendo a autoridade arbitrária e inconstitucional que brancos exerciam sobre negros, algo aceito e considerado necessário pelos negros de Manderlay. Lars faz uma crítica feroz à sociedade estadunidense ao abordar a incapacidade de aceitação dos negros por parte da comunidade branca, “livre” e de ares, estranhamente, “democráticos”.
ANÁLISE DE “DOGVILLE”
Dogville é o primeiro filme de uma trilogia a respeito dos Estados Unidos desenvolvida por Lars Von Trier. O drama, lançado no ano de 2003, pode ser considerado uma obra-prima do cinema mundial não apenas por esboçar uma das facetas da poderosa sociedade americana, criticando-a de maneira veemente, mas, também, por ser original, transpondo o teatro para as telonas. O filme parece ser o registro de uma peça teatral, obviamente com uma linguagem cinematográfica. O diretor ousa ao descartar a utilização de cenários, optando por um modesto galpão negro no qual a história se desenrola.
O título e os materiais promocionais da obra pouco dizem a respeito de seu teor. Um dos cartazes apresenta a imagem de Grace (Nicole Kidman) adormecida e escondida entre as caixas de maçã na carroceria do caminhão de Bem - uma infrutífera tentativa de fuga. Já o outro pôster traz a imagem da face de Grace e, acima dela, pequenos quadrinhos com as fotografias de alguns dos moradores de Dogville.
Por ser um elemento presente no filme - o nome da cidade em questão - o título, assim como os cartazes, não evidenciam o gênero da obra, sendo percebido apenas ao longo de sua exibição.
Dogville, uma pequena cidade localizada entre as montanhas rochosas dos EUA e habitada por menos de duas dúzias de pessoas. Quando Grace, fugindo de gângsters, chega à cidade, todos se alarmam, mas, em comum acordo, decidem esconder a jovem e bela fugitiva por duas semanas, tempo suficiente para que ela provasse estar acima de qualquer suspeita.
Como retribuição à confiança nela depositada, Grace decide prestar pequenos favores aos moradores da cidade, assim como Tom, o jovem guardião dos bons costumes de Dogville, havia aconselhado que fizesse. “Dogville te ofereceu duas semanas, agora lhes ofereça você!” sugeriu ele.
A cidade recusa os serviços de Grace, porém volta atrás, pois em cada casa de Dogville sempre existia um pequeno trabalho que gostariam que fosse realizado apesar de não ser necessário fazê-lo. Grace, então, passa a dividir o seu tempo entre as “obrigações” que lhe competia no pequeno vilarejo, ou seja, dar atenção à Jack McKay, um senhor idoso e cego que escondia a deficiência de todos; ao senhor Thomas Edson, um médico aposentado que, hipocondríaco, sempre inventava moléstias e doenças a serem diagnosticadas pela prestativa Grace; à June, uma jovem deficiente mental que usava fraldas, mas agora dispunha de quem a dirigisse ao banheiro quando fosse preciso. Grace ainda polia copos na casa dos Henson, cuidava da parte seca da plantação de groselhas de Ma Ginger - espaço potencial para novos cultivos - e cuidava dos sete filhos de Vera quando na ausência dela. Em troca do trabalho, Grace recebe uma casinha simples perto da mina e um salário insignificante.
Com o passar do prazo dado à jovem, a busca por ela só fazia aumentar. Percebendo a fragilidade de Grace, Dogville passa a exigir cada vez mais dela. É quando os moradores da cidade mostram suas garras e é possível conhecer, verdadeiramente, seus habitantes, que impõem um desumano sistema de exploração física e moral à Grace. A jovem sonhadora que via esperança e bondade em cada rosto, passa por um vertiginoso processo de desilusão e apatia diante das rotineiras violências por ela sofrida.
O niilismo presente em “Dogville” e demais dramas de Lars Von Trier, revela a pouca esperança do diretor com a humanidade. Por encarar a realidade de maneira tão severa é que, talvez, o diretor tenha sofrido ainda mais com a depressão que o afastou do cinema desde as filmagens de “O Grande Chefe”.
Os minutos finais são, sem sombra de dúvidas o melhor de “Dogville”. O diretor descarta um fim moralista com o súbito arrependimento e transformação de seus personagens e a redenção poderosa do perdão. Em uma das cenas finais, Lars mostra-se perspicaz ao estabelecer uma tênue relação de equidade entre pai e filha e dois participantes da trindade santa, Pai e filho. Filhos misericordiosos, que apesar de terem sofrido lutam pelo perdão do próximo; e pais, símbolos de amor, mas também de justiça. “Definitivamente, o mundo seria bem melhor sem Dogville”, é a conclusão a que Grace chega e que conduz à punição que cabia aos moradores da cidade.
O contexto no qual o longa se passa é o da Grande Depressão. Por não se prender à fatos históricos, o diretor não constrói uma histórica anacrônica, com falhas relativas aos EUA do início do século 1930, imerso em uma grande crise econômica, pelo contrário, os trajes e casas - que mais parecem cubículos - dos personagens de Dogville são simples, sem luxo algum, o que evidencia o período conturbado que sucedeu a quebra da bolsa de Nova York.
A penúria no vilarejo é tão grande que Chuck chega a ameaçar o filho, Janson, caso voltasse dar algum osso com carne para o cachorro. “Quando foi a última vez que vimos carne?”, pergunta o pai furioso. O ofício da família Henson é outro ponto que chama a atenção. Em situação tão desfavorável, cabia polir copos baratos tornando-os brilhantes e agregados de valor.
Apesar de ser um retrato fiel da desestabilização das pequenas cidades rurais e afastadas dos grandes centros urbanos diante da crise econômica, “Dogville” é resultado da visão negativa de um diretor estrangeiro que nunca sequer pisou em solo americano, o que gerou muita discussão nos Estados Unidos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS· ENTREVISTA. Entrevista com Lars Von Trier por Geoffrey Mcnab. Sala de Imprensa. Disponível em: < menu="&id=" paginaatual="9">. Acesso em 25 de abril de 2009.http://www.focojornalistico.com.br/imprensa_detalhes.asp?Menu=&id=426&PaginaAtual=9>. Acesso em 25 de abril de 2009.
· MOURO, Paola Prado. Biografia do diretor. Site Sala do Lars Von Trier. Disponível no site: <
http://www.larsvontrier.com.br/ >. Acesso em 25 de abril de 2009.
· SÁ E ZOZIN, Ludimila e Janaina Cunha. Vanguarda ou enganação? Revista Múltipla, nº 16, agosto, 2000, p. 12-15.