domingo, 20 de setembro de 2009

Crítica - Túmulo dos Vaga-lumes

Crítica apresentada à disciplina "Fundamentos de Cinema"

Para muitos de nós, ocidentais, animes são desenhos estereotipados, marcados pela existência de mundos paralelos, místicos e fantásticos, onde existem heróis dotados de poderes; animais e monstros que além de falar, possuem personalidade e caráter definido, o que pode impressionar os mais críticos e dificilmente levados pela magia da sétima arte.

“Túmulo dos Vaga-lumes” se afasta dessa fórmula de sucesso que levou “Pokemón”, “Sakura”, “Naruto”, “Dragon Ball Z” dentre tantos outros animes ao retumbante sucesso que perpassou as fronteiras do pequeno território nipônico. Quisera os irmãos Seita e Setsuko, terem os superpoderes dos heróis japoneses, talvez, dessa forma pudessem mudar seus destinos, a tragédia anunciada logo nos primeiros minutos dessa singela e poética animação de Isao Takahata.


A história se desenrola num Japão imerso em um conflito de grande magnitude, a Segunda Guerra Mundial. O diretor apresenta a visão japonesa do acontecimento, que, obviamente, difere da idéia caricata envolvendo um patriotismo tolo e cego, ainda hoje observado nas obras cinematográficas americanas que tratam do tema, as quais colocam os EUA quando não como vítima, como grande redentor das nações dependentes de seu poderio bélico. Apesar de poder incriminar as barbáries norte-americanas, Takahata não o faz. Ao espectador cabe visualizar a guerra a seu modo e tirar suas próprias conclusões. O diretor prefere centrar sua narrativa, no carinho e companheirismo que pauta a relação entre dois irmãos órfãos que seriam ceifados pelo jogo de poder e demonstrações de força das grandes potências.

O que comove em “Túmulo dos Vaga-lumes” é o amor que une Seita e a pequena Setsuko, sem excluir, é claro, a desesperadora luta de duas crianças que “queriam apenas viver”, mesmo que diante de condições tão adversas, como aponta Rodrigo Cunha em crítica feita para o site Cine Players.

Técnica

Animações requerem muito mais que um apurado trabalho estético. Assim como nas obras das demais categorias cinematográficas, é preciso ter atenção para os recursos de que dispõe o diretor, para fazer com que o desenho se aproxime ao máximo do real - em se tratando de animações dramáticas, caso de “Túmulo dos Vaga-lumes”. Faz-se necessário uma ótima mixagem de som; e que as vozes unidas às expressões faciais dos personagens consigam traduzir o que sentem, fazendo da cena tão eficiente, emotivamente falando, quanto a de obras ficcionais envolvendo atores. Quanto a esses quesitos, a animação, apesar de ter sido lançada há 20 anos, não peca.
Isao Takahata utilizou a técnica manual de desenho animado para a construção de “Túmulo dos Vaga-lumes”. Em entrevista ao site especializado em anime e manga, Katana, o diretor afirma não ter feito uso de nenhum recurso digital em todas as suas produções. A técnica manual pode ter sido uma opção, ou - mais provável - a única opção, tendo em vista a onerosidade de produções computadorizadas. “Nenhuma de nossas produções anteriores [à “Majo no Takkyubin”, de 1989] se pagaram, apesar de sua grande popularidade”, relata.

As cores utilizadas no anime são predominantemente frias. Azuis de tonalidades escuras e o verde musgo são usados sem comedimento, além do preto e cinza. A estratégia de optar pela escala de matizes carregadas, tem íntima relação com o caos social instalado no Japão, a partir dos ataques aliados. A guerra, o medo dos constantes bombardeios, os cenários de destruição e desolação, os céus enfumaçados e a fome não poderiam ter outras tonalidades se não as tristes e sombrias.
As cores vivas, claras e suaves aparecem nos poucos momentos em que os bombardeios cessam. É quando os personagens podem reconstruir o que havia sido reduzido a pó e acalentar a esperança de dias melhores.

A trilha sonora é composta por canções melódicas. A música aparece como fator complementar à utilização das cores. Harmoniosamente, pianos, órgãos e flautas, tocam canções infantis embalando os momentos de descontração, felicidade e lembranças do passado. A música parece ter o papel de materializar a inocência infantil.

Em alguns momentos o som é abruptamente interrompido pelos barulhos de gritos e sirenes que anunciam o ataque do inimigo. Voltam as cores frias e tristes. Nesses momentos, o violino tem a função de criar a atmosfera de apreensão e terror.
O canto lírico nas tomadas finais, unido às imagens de Setsuko brincando e sorrindo, desfere no espectador o golpe cabal. Apesar da rendição japonesa em agosto de 1945, muitos dos estragos ocasionados pela guerra já não podiam ser reparados.

Dossiê - Lars Von Trier

LARS VON TRIER

Nascido em 30 de abril de 1956, na cidade dinamarquesa de Copenhague, Lars Von Trier cresceu numa família atípica. Seus pais, que se consideravam comunistas, permitiram que Lars experimentasse da “liberdade” desde bem pequeno. Uma das únicas restrições impostas a Trier era quanto a uma formação religiosa. O ceticismo e a descrença imperavam no seio familiar do menino que desde os 10 anos de idade começara a se interessar pelo cinema, produzindo - com a câmera 8mm que sua mãe lhe dera - pequenos curtas que refletiam as experiências vivenciadas por ele até então.
O cinema foi meio através do qual Lars pode conhecer o que não lhe era permitido pelos pais. Em 1974 ele se matricula na Escola Dinamarquesa de Cinema onde produz filmes que se destacam dentro da academia.
Pela criação recebida e mediante a vontade de reinventar o cinema, Trier “não aceitava as regras e convenções que lhe eram impostas, entrando em atrito constantemente com a maioria de seus professores”, como aponta Paola Prado Mouro em biografia escrita para o site “Sala do Lars”.
Anos após a conclusão do curso, Trier lança seu primeiro longa-metragem, “Elemento do Crime”, filme que, ao ser premiado em Cannes, lhe dá grande projeção fora da Dinamarca.
A vontade de quebrar os paradigmas do cinema, levam Lars a criar uma técnica própria e seja apontado como um dos principais representantes do cinema contemporâneo.
Trier é considerado por muitos, como extremamente sistemático e perfeccionista. Filma várias vezes e de diversos ângulos uma mesma cena, até que o ator ou atriz atinja a performance que ele, de olhar criterioso, quer que tenham.
Atualmente Lars luta contra a depressão que o afastou do cinema durante três anos. O último longa produzido é “Anticristo” que concorreu à Palma de Ouro no Festival de Cannes 2009.

FILMOGRAFIA E PREMIAÇÕES

1977 - The Orchid Gardener - Curta
1979 - Menthe - la bienheureuse - Curta
1980 - Nocturne - Curta
1981 - Den Sidste detalje - Curta
1982 - Liberation Pictures
1984 - Forbrydelsens Element
(Elemento do Crime)
1987 - Epidemic (Epidemia)
1991 - Europa
1996 - Breaking the Waves (Ondas do Destino)
1998 - Idioterne (Os Idiotas)
2000 - Dancer in the Dark (Dançando no Escuro)
2003 - Dogville
2005 - Manderlay
2006 - Direktoren for det hele
(O Grande Chefe)
2009 - Antichrist (Anticristo) - Estréia em agosto de 2009

O primeiro longa-metragem produzido por Lars Von Trier é o trampolim para seu sucesso como diretor. “Elemento do Crime” ganha o Prêmio Técnico no Festival de Cannes em 1985.
Em 1991, com “Europa” Lars consegue dois prêmios em Cannes, o Grande Prêmio do Júri e o Prêmio de Melhor Contribuição Artística.
No ano de 1996 o diretor lança o primeiro filme da bem-sucedida trilogia “Coração de Ouro”. “Ondas do Destino” foi indicado a vários prêmios, inclusive ao Oscar (Emily Watson à categoria de Melhor Atriz). Recebeu o César de Melhor Filme Estrangeiro e o Grande Prêmio do Júri, novamente, em Cannes.
Em 2000, o aclamado “Dançando no Escuro” recebe diversas indicações nos grandes festivais europeus e americanos. Ganha o prêmio máximo em Cannes, a Palma de Ouro, além da Palma de Melhor Atriz para Björk; o Independent Spirit Awards na categoria de Melhor Filme Estrangeiro e o Goya de Melhor Filme Europeu.

O DOGMA 95 E O ESTILO

Em 13 de março de 1995, Thomas Vintenberg e Lars Von Trier criam o movimento Dogma 95 que, dentre outras pretensões, visava propagar a idéia de um cinema desnudo de todos os recursos cinematográficos recorrentes nas superproduções americanas. Por um cinema mais autêntico, comprometido com a realidade e menos comercial, a dupla de cineastas dinamarqueses achou por bem banir a utilização da trilha musical, dos cenários artificiais e da mixagem sonora.

Os dez princípios do contestado Dogma 95 são:

1. As filmagens devem ser feitas em locais externos. Não podem ser usados acessórios ou cenografia (se a trama requer um acessório particular, deve-se escolher um ambiente externo onde ele se encontre);
2. O som não deve jamais ser produzido separadamente da imagem ou vice-versa. (A música não poderá ser utilizada a menos que ressoe no local onde se filma a cena);
3. A câmera deve ser usada na mão. São consentidos todos os movimentos - ou a imobilidade - devidos aos movimentos do corpo. (O filme não deve ser feito onde a câmera está colocada; são as tomadas que devem desenvolver-se onde o filme tem lugar);
4. O filme deve ser em cores. Não se aceita nenhuma iluminação especial. (Se há muito pouca luz, a cena deve ser cortada, ou então, pode-se colocar uma única lâmpada sobre a câmera);
5. São proibidos os truques fotográficos e filtros;
6. O filme não deve conter nenhuma ação "superficial". (Homicídios, Armas, etc. não podem ocorrer);
7. São vetados os deslocamentos temporais ou geográficos. (O filme se desenvolve em tempo real);
8. São inaceitáveis os filmes de gênero;
9. O filme deve ser em 35 mm, padrão;
10. O nome do diretor não deve figurar nos créditos.

As primeiras obras que obedeceram às premissas excêntricas do movimento foram “Festa de Família” de Vintenberg e “Os Idiotas” de Trier.
Ainda hoje, dez anos após o lançamento do manifesto no Festival de Cannes em 1998, os idealizadores são questionados quanto à criação de regras, talvez, tão pouco atrativas e eficientes.
O movimento Dogma 95 passou longe de ser um vento impetuoso revolucionário na história do cinema. Soou como “um oportunismo com ares de jogada de marketing”, como aponta Janaina Cunha Zonzin e Ludymilla Sá em artigo publicado pela revista Múltipla de agosto/ 2000. Muitas das regras estabelecidas seriam esquecidas por seus próprios criadores nas produções subsequentes.
Obviamente o movimento não foi totalmente descartável. A câmera nas mãos ou ombro continua sendo marca distintiva das obras de Lars Von Trier. A não estabilidade das imagens captadas pelo diretor potencializa o envolvimento dos espectadores com os longas pela regrinha que lhes confere verossimilhança. A câmara de Lars é inquieta e penetrante. Por utilizar de muitas tomadas em primeiríssimo plano, focando o rosto de seus protagonistas, chegamos a nos sentir incomodados com o sofrimento deles, pois parece não se tratar do infortúnio exclusivo de Selma em “Dançando no Escuro” ou Bess em “Ondas do Destino”, são sentimentos compartilhados com quem está à frente da (intransponível?) tela de cinema ou TV.
A obra de Lars Von Trier é constituída, essencialmente, de longas dramáticos. Mas o diretor teve experiências com outros gêneros cinematográficos, como o musical, o terror (sua última produção, “Anticristo” a ser lançada em agosto de 2009) e a comédia (“O grande Chefe” e “Os Idiotas”).
Os recursos técnicos usados em suas obras não possuem regularidade, exceto a utilização da câmera nas mãos ou ombro. A imprevisibilidade de Lars ao filmar fica clara quando ele contraria quase todas as regras do manifesto em 2000, utilizando “tudo o que tinha direito” para filmar o musical dramático “Dançando no Escuro”. O diretor chegou a fazer uso de cem câmeras em um dos devaneios musicais da personagem de Björk - nada parecido com o que propunha cinco anos atrás.
Já em “Dogville” e “Manderlay” ele abre mão dos cenários, mas não de uma boa mixagem de som para construir aquilo que não podia ser visto, o que fisicamente não existia, como as portas das casas. O diretor utiliza ainda recursos fotográficos de tratamento da imagem e a trilha sonora.
Em “Anticristo” Lars opta uma fotografia que se aproxima à dos longas americanos. Ele recorre ainda à utilização de efeitos especiais e, no processo de montagem, aos flashbacks - o que era terminantemente proibido pelo Dogma.

TEMÁTICAS ABORDADAS

Uma das principais características de Lars Von Trier é a sutileza. Tendo como norte roteiros audaciosos e originais, ele consegue traçar intrigantes análises sociológicas ligadas à obscura psique humana, além de provocar em seus espectadores reflexões e auto-análises constrangedoras.
Os simbolismos estão presentes aos montes nos longas do diretor. Nenhum elemento aparece sem uma justificativa plausível - sinos, correntes, óculos não são meros acessórios. Suas comédias podem parecer leves, porém não são nada inocentes, mas sim, imbuídas de questões concernentes à ética moral. Por ser demasiadamente político, Trier foi muito criticado como ele mesmo relata em entrevista a Geoffrey Mcnab, traduzida e publicada pelo site “Foco Jornalístico” em agosto de 2007.
Seus personagens são asquerosos, dissimulados, aproveitadores e perversos frente à imaculada figura de suas protagonistas - personificação dos mais nobres atributos humanos.
O longa “Ondas do Destino”, primeiro filme da trilogia “Coração de Ouro”, revela o paradoxo egoísmo/ generosidade implicado nas relações amorosas. Lars faz com que a fragilidade de Bess, protagonista vivida pela excelente Emily Watson, não esteja ligada apenas à sua debilidade mental, mas também à sua fome de amor e amar, à sua vontade incontrolável de viver tudo aquilo que esteve privada sob as rédeas do avô e mãe conservadores e leis invioláveis da comunidade arraigada à tradições dogmáticas e puritanas da religião da qual a moça fazia parte. O diretor expõe ainda a falha da instituição religiosa ao utilizar da figura de uma igreja ortodoxa, presa a regras obsoletas que reprimiam até mesmo manifestações sentimentais primárias, que fazia uso de métodos cruéis para a absorção de seus valores e ao apontar a incabível severidade das punições exercidas pelo grupo de anciãos que prezavam pelos preceitos religiosos que pautavam a vida da comunidade. Observe como a “kirki”, conjunto senil, se sente no direito de deferir juízos que caberiam somente a Deus. O diretor consegue, então, plantar nos espectadores mais atentos, pequenas sementes de rebeldia e contestação.
O altruísmo é a principal virtude de Selma, personagem da cantora islandesa Björk em “Dançando no Escuro”, filme que completa a trilogia “Coração de Ouro”. O longa, lançado no ano de 2000, é considerado, por vários críticos de cinema, um dos mais dramáticos já feitos. Lars cria a figura de uma heroína tcheca que vai para os EUA trabalhar para tentar livrar o filho da cegueira, doença hereditária que, gradualmente, torna a visão da protagonista turva até que o escuro prevaleça. Entre a dura realidade de Selma e seu mundo paralelo - o dos musicais, sua maior paixão e válvula de escape - o sofrimento da personagem é elevado à vigésima quinta potência, o que levou - ou forçou - Cannes às lágrimas na primeira exibição do longa onde disputava a Palma de Ouro.
Em “Manderlay”, continuação de “Dogville” (análise abaixo), o diretor segue a mesma fórmula do primeiro filme da trilogia a respeito do EUA, dando mais um claro exemplo da intolerância norte-americana. Dessa vez a temática é a escravidão africana. O diretor expõe os reflexos de tão longo e perverso período de dominação que refletiam 70 anos após a abolição da escravatura nos EUA. Grace, vivida por Bryce Dallas Howard que substitui Nicole Kidman, tenta impor um sistema de igualdade e liberdade democrática numa fazenda com resquícios dos Estados Unidos discriminatório [não que ele tenha deixado de ser] que começava a emergir do século XIX. Porém, ao tentar ensinar aos negros “livres”, mas psicologicamente dependentes do domínio branco, o valor da liberdade, Grace percebe que seus esforços são vãos, sendo a autoridade arbitrária e inconstitucional que brancos exerciam sobre negros, algo aceito e considerado necessário pelos negros de Manderlay. Lars faz uma crítica feroz à sociedade estadunidense ao abordar a incapacidade de aceitação dos negros por parte da comunidade branca, “livre” e de ares, estranhamente, “democráticos”.


ANÁLISE DE “DOGVILLE”

Dogville é o primeiro filme de uma trilogia a respeito dos Estados Unidos desenvolvida por Lars Von Trier. O drama, lançado no ano de 2003, pode ser considerado uma obra-prima do cinema mundial não apenas por esboçar uma das facetas da poderosa sociedade americana, criticando-a de maneira veemente, mas, também, por ser original, transpondo o teatro para as telonas. O filme parece ser o registro de uma peça teatral, obviamente com uma linguagem cinematográfica. O diretor ousa ao descartar a utilização de cenários, optando por um modesto galpão negro no qual a história se desenrola.
O título e os materiais promocionais da obra pouco dizem a respeito de seu teor. Um dos cartazes apresenta a imagem de Grace (Nicole Kidman) adormecida e escondida entre as caixas de maçã na carroceria do caminhão de Bem - uma infrutífera tentativa de fuga. Já o outro pôster traz a imagem da face de Grace e, acima dela, pequenos quadrinhos com as fotografias de alguns dos moradores de Dogville.
Por ser um elemento presente no filme - o nome da cidade em questão - o título, assim como os cartazes, não evidenciam o gênero da obra, sendo percebido apenas ao longo de sua exibição.

Dogville, uma pequena cidade localizada entre as montanhas rochosas dos EUA e habitada por menos de duas dúzias de pessoas. Quando Grace, fugindo de gângsters, chega à cidade, todos se alarmam, mas, em comum acordo, decidem esconder a jovem e bela fugitiva por duas semanas, tempo suficiente para que ela provasse estar acima de qualquer suspeita.
Como retribuição à confiança nela depositada, Grace decide prestar pequenos favores aos moradores da cidade, assim como Tom, o jovem guardião dos bons costumes de Dogville, havia aconselhado que fizesse. “Dogville te ofereceu duas semanas, agora lhes ofereça você!” sugeriu ele.
A cidade recusa os serviços de Grace, porém volta atrás, pois em cada casa de Dogville sempre existia um pequeno trabalho que gostariam que fosse realizado apesar de não ser necessário fazê-lo. Grace, então, passa a dividir o seu tempo entre as “obrigações” que lhe competia no pequeno vilarejo, ou seja, dar atenção à Jack McKay, um senhor idoso e cego que escondia a deficiência de todos; ao senhor Thomas Edson, um médico aposentado que, hipocondríaco, sempre inventava moléstias e doenças a serem diagnosticadas pela prestativa Grace; à June, uma jovem deficiente mental que usava fraldas, mas agora dispunha de quem a dirigisse ao banheiro quando fosse preciso. Grace ainda polia copos na casa dos Henson, cuidava da parte seca da plantação de groselhas de Ma Ginger - espaço potencial para novos cultivos - e cuidava dos sete filhos de Vera quando na ausência dela. Em troca do trabalho, Grace recebe uma casinha simples perto da mina e um salário insignificante.
Com o passar do prazo dado à jovem, a busca por ela só fazia aumentar. Percebendo a fragilidade de Grace, Dogville passa a exigir cada vez mais dela. É quando os moradores da cidade mostram suas garras e é possível conhecer, verdadeiramente, seus habitantes, que impõem um desumano sistema de exploração física e moral à Grace. A jovem sonhadora que via esperança e bondade em cada rosto, passa por um vertiginoso processo de desilusão e apatia diante das rotineiras violências por ela sofrida.

O niilismo presente em “Dogville” e demais dramas de Lars Von Trier, revela a pouca esperança do diretor com a humanidade. Por encarar a realidade de maneira tão severa é que, talvez, o diretor tenha sofrido ainda mais com a depressão que o afastou do cinema desde as filmagens de “O Grande Chefe”.
Os minutos finais são, sem sombra de dúvidas o melhor de “Dogville”. O diretor descarta um fim moralista com o súbito arrependimento e transformação de seus personagens e a redenção poderosa do perdão. Em uma das cenas finais, Lars mostra-se perspicaz ao estabelecer uma tênue relação de equidade entre pai e filha e dois participantes da trindade santa, Pai e filho. Filhos misericordiosos, que apesar de terem sofrido lutam pelo perdão do próximo; e pais, símbolos de amor, mas também de justiça. “Definitivamente, o mundo seria bem melhor sem Dogville”, é a conclusão a que Grace chega e que conduz à punição que cabia aos moradores da cidade.
O contexto no qual o longa se passa é o da Grande Depressão. Por não se prender à fatos históricos, o diretor não constrói uma histórica anacrônica, com falhas relativas aos EUA do início do século 1930, imerso em uma grande crise econômica, pelo contrário, os trajes e casas - que mais parecem cubículos - dos personagens de Dogville são simples, sem luxo algum, o que evidencia o período conturbado que sucedeu a quebra da bolsa de Nova York.
A penúria no vilarejo é tão grande que Chuck chega a ameaçar o filho, Janson, caso voltasse dar algum osso com carne para o cachorro. “Quando foi a última vez que vimos carne?”, pergunta o pai furioso. O ofício da família Henson é outro ponto que chama a atenção. Em situação tão desfavorável, cabia polir copos baratos tornando-os brilhantes e agregados de valor.
Apesar de ser um retrato fiel da desestabilização das pequenas cidades rurais e afastadas dos grandes centros urbanos diante da crise econômica, “Dogville” é resultado da visão negativa de um diretor estrangeiro que nunca sequer pisou em solo americano, o que gerou muita discussão nos Estados Unidos.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

· ENTREVISTA. Entrevista com Lars Von Trier por Geoffrey Mcnab. Sala de Imprensa. Disponível em: < menu="&id=" paginaatual="9">. Acesso em 25 de abril de 2009.http://www.focojornalistico.com.br/imprensa_detalhes.asp?Menu=&id=426&PaginaAtual=9>. Acesso em 25 de abril de 2009.

· MOURO, Paola Prado. Biografia do diretor. Site Sala do Lars Von Trier. Disponível no site: < http://www.larsvontrier.com.br/ >. Acesso em 25 de abril de 2009.

· SÁ E ZOZIN, Ludimila e Janaina Cunha. Vanguarda ou enganação? Revista Múltipla, nº 16, agosto, 2000, p. 12-15.